Em todo o mundo, há iniciativas para promover um sistema econômico baseado no cuidado com as pessoas e o planeta, como a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)

Renata Nitta
Tradução: André Ribeiro e Melissa Harkin

Todos os dias vemos diversas crises nos noticiários, como secas, inundações, incêndios, ondas de calor e perda de biodiversidade, acompanhadas de problemas socioeconômicos, enquanto as grandes empresas continuam acumulando lucros. É difícil enxergar além dessa terrível realidade ou mesmo imaginar um caminho diferente. Porém revoluções invisíveis estão acontecendo em todos os lugares: nas cidades, nos bairros ou no campo. Essas revoluções são lideradas por pessoas como você, como nós, que estão desafiando o sistema socioeconômico atual e se unindo para construir um futuro melhor para suas comunidades e para si mesmas, a despeito das situações desafiadoras.

Suas experiências não chegam às manchetes, mas são muito importantes para a questão de como a humanidade pode viver em um mundo moderno e combater os impactos negativos do sistema capitalista neoliberal. Essas soluções (muitas provenientes da maioria global) podem nos ajudar a reimaginar um futuro alternativo, onde combatemos as desigualdades e distribuímos o poder de forma igualitária para que todos possam viver uma vida saudável e digna.

Sistema agroflorestal na comunidade Enjeitado © Vladia Lima/ASA

A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) é uma rede de mais de 3 mil organizações da sociedade civil que atuam em todos os estados da região semiárida do país, uma área que equivale a quatro vezes o Reino Unido e serve como lar de cerca de 27 milhões de brasileiros (12% da população).

A região semiárida do Brasil tem florestas secas com uma vasta biodiversidade, mas sofre com a escassez de água, o que faz com que seu clima seja hostil — há muito associado à degradação ambiental, pobreza extrema, seca e elites predatórias que são proprietárias de terras. Hoje em dia, a maior parte dos 33 milhões de brasileiros que passam fome em todo o país está concentrada nos estados do nordeste que compõem a região semiárida. Os ecossistemas semiáridos e as pessoas que dependem deles estão especificamente vulneráveis às mudanças climáticas, e a construção da resiliência dos ecossistemas tem sido destacada como a melhor solução para a adaptação. 

“Era conhecida como a região da miséria, do infortúnio, da fome, da pobreza, da impossibilidade”, conta Cícero Félix dos Santos, coordenador da ASA. A principal missão da ASA é criar uma vida digna para as pessoas, em equilíbrio com outros seres vivos e com o meio ambiente, rompendo com a “indústria da seca” que desvia dinheiro público para grandes empresas e empobrece a população local. A rede consegue isso reunindo as forças da sociedade civil em toda a região semiárida para articular uma alternativa a essa realidade.

Em vez de combater a seca, a rede opta por meios de adaptação, compartilhando produtos e poder com todos, em vez de concentrar o poder nas mãos de poucos. Isso inclui priorizar alimentos adequados e saudáveis, estocar suprimentos, usar cisternas para a coleta de água, usar sementes nativas e ter o envolvimento ativo do público na definição de políticas públicas para que a ASA “surja para influenciar politicamente uma nova perspectiva de envolvimento das pessoas, garantindo direitos e dignidade de vida na região.”

Família participante do projeto do banco de sementes crioulas – Comunidade Emparedado © Mauricio Pokemon/ASA

Onde há água, há vida

Uma das maiores conquistas da ASA foi a instalação de mais de 1 milhão de dispositivos para coletar, armazenar e manejar a água da chuva, nas últimas duas décadas. Esses dispositivos têm garantido uma vida digna em uma região onde milhões já morreram ao longo dos séculos por falta de água e alimentos ou por causa do consumo de água compartilhado com animais — intervindo no padrão de migração em massa para o sudeste industrializado do Brasil. Para Cícero, as mulheres, e principalmente as jovens, são quem mais se beneficia com a rede ASA e com a instalação de cisternas para a coleta de água.

“As mulheres dessa região perderam cerca de 20% de sua vida carregando água na cabeça”, conta. “Agora, esses 20% são usados para cuidarem de si e de suas famílias, participar de reuniões e estudar.”

Nossa casa comum: nosso planeta

A rede ASA também está cuidando do ambiente comum da região semiárida, grande parte da qual se encontra em ruínas após séculos de uso concentrado por proprietários de terra locais para monoculturas e criação de gado.

“Quando falamos de economia, as pessoas costumam pensar que ela se resume a dinheiro e finanças”, disse Cícero. “Mas a essência da economia é a arte de cuidar da nossa casa; a arte de cuidar do ambiente comum.”

“No nosso caso, temos um grande desafio, que é cuidar da nossa casa comum, cuidar do planeta Terra”, acrescentou. “… Por isso precisamos avançar nessa interpretação, nessa visão da economia além do financeiro, além do dinheiro.”

Experiência agroecológica no Polo da Borborema © Ana Lira/ASA

A região semiárida do Brasil é o único lugar da Terra que abriga o bioma Caatinga, uma ecorregião de vegetação tropical semiárida que também é a mais ameaçada do país, tanto que alguns temem sua extinção. Sua preservação não é importante apenas para a região em si, mas para todo o planeta, pois não existe Caatinga em nenhum outro lugar do mundo.

Maria Neves, da comunidade Caiçara, no distrito rural de Abóbora, em Juazeiro, Bahia, faz parte da Rede ASA e está envolvida em um projeto comunitário para preservar um trecho da Caatinga. Ela contou sobre a experiência coletiva de “recaatingar” uma área degradada equivalente a 20 campos de futebol, onde agora produzem bens agrícolas, como o mel, para as comunidades locais. Seu maior orgulho é o papel que os jovens desempenharam no projeto.

“A maioria dos membros da comunidade é formada por jovens”, disse. “Eles pegaram tudo (ferramentas, equipamentos, pedras) […] com cabeça erguida, coragem e braços fortes. Porque quando estamos juntos, é mais fácil trabalhar; quando estamos sozinhos, não podemos fazer isso. Quando você tem união, você pode. Quanto mais você organizar, melhor, porque aqui em nossa comunidade, por exemplo, isso beneficia a todos que estão aqui”.

A atuação da rede ASA demonstra de maneira bem realista como a verdadeira fonte de riqueza sustentada não deriva da especulação e exploração capitalista, mas das sociedades humanas que trabalham em harmonia com a natureza, e não contra ela. Como as comunidades indígenas no Parque das Tribos, isto foi conseguido através da participação pública cívica baseada nos valores de filiação, universalismo, respeito e dignidade, igualdade e equidade, direitos humanos e os direitos da natureza.

Visões alternativas da sociedade baseadas nos princípios do bem-estar como prioridade e da verdadeira democracia estão ressurgindo em todos os lugares e abrindo a possibilidade de capacitar os cidadãos a terem acesso equitativo ao poder de decisão — para que o bem-estar, tanto das pessoas quanto da natureza, também traga benefícios econômicos para as pessoas mais pobres. A mudança transformacional que foi alcançada nesta região desafiadora e vasta traz lições importantes para todos nós sobre como construir um caminho para um futuro limpo, verde e justo para nossos filhos.

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