Situação foi tão tensa que a maior organização indígena do Brasil, a Apib, considera deixar a mesa de negociação

Reunião de Conciliação do Marco Temporal no STF. Foto: Adriano Machado / Greenpeace

No dia 09 de agosto, celebramos o Dia Internacional dos Povos Indígenas, uma data que reforça a importância de reconhecer e respeitar os direitos e a cultura dos povos originários. Este ano, porém, essa celebração é marcada por uma luta intensa contra a tese do Marco Temporal, que tenta limitar os direitos indígenas às suas terras, condicionando-os à comprovação de ocupação em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

Essa tese, amplamente considerada uma afronta aos direitos originários, tem sido foco de mobilização e resistência para movimentos indígenas e seus aliados.

Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a tese do Marco Temporal e determinou sua inconstitucionalidade, reforçando que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras são “direitos originários” e, portanto, não podem ser limitados por uma data específica.

Com uma votação expressiva de 9 votos a 2, o STF deixou claro que esses direitos são inegociáveis. No entanto, em resposta à decisão, a bancada ruralista do Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701, que restabelece a tese do Marco Temporal e impõe obstáculos significativos aos processos de demarcação de terras. Essa lei já causa confusão e interrupção nas demarcações, segundo o próprio Ministério da Justiça e FUNAI.

Diante desse cenário, a maior organização indígena do nosso país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reagiu e ingressou com ação (ADI 7582) no  STF para que seja declarada  a inconstitucionalidade dessa lei.

Tensões e desafios

Nos últimos meses, o ministro Gilmar Mendes, alegando que essa questão precisa ser “pacificada”, convocou uma mesa de conciliação sobre o assunto. A primeira reunião ocorreu na última segunda-feira, dia 5, e foi marcada por tensões e desafios.

Em seu discurso inicial, o ministro falou sobre “protagonismo criativo” e a importância de se  resolver os impasses jurídicos por meio da conciliação, enquanto juízes auxiliares pediram aos representantes indígenas que ‘abrissem seus corações’, pois estavam tendo uma ‘oportunidade única’ de serem ouvidos.

O problema é que, apesar das palavras, na composição da mesa havia apenas 6 representantes dos povos indígenas, diante de um total de 24 cadeiras ocupadas. Isso já era motivo de preocupação quanto à imparcialidade e transparência do processo. Durante a reunião, lideranças indígenas expressaram desconforto com a forma como a mesa foi montada: unilateralmente, sem tradução em tempo real para algumas lideranças, e com a presença de diversos representantes ruralistas – grupos historicamente opositores aos direitos indígenas.

As lideranças indígenas relataram ainda, que suas falas foram constantemente interrompidas e que não tiveram tempo suficiente para consultar suas bases, antes da tomada de decisões. Ainda antes da sessão iniciar, o coordenador jurídico da Apib, Maurício Terena, chegou a ser impedido de acessar as dependências do Supremo Tribunal Federal.  Um incidente que simboliza as dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas nesse processo.

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A aprovação da Lei 14.701 pelo Congresso foi uma resposta ao julgamento do STF em 2023, que considerou o marco temporal inconstitucional (Foto: Adriano Machado/Greenpeace)

Pedidos não atendidos

Para manter sua participação nas negociações, a Apib apresentou uma série de solicitações, incluindo a suspensão imediata da Lei 14.701; uma resposta a diversos processos e recursos protocolados no STF; e a garantia de que as reuniões seriam públicas. Apesar do pedido, a reunião foi iniciada sem uma decisão prévia sobre esses pedidos, e que os pedidos da organização sobre a suspensão da lei se dariam no auto do processo.

Ao longo da sessão, a Apib manifestou preocupação com as regras da mesa de conciliação, consideradas injustas, sem transparência e com critérios pouco claros. Por outro lado, representantes ruralistas agradeceram ao ministro Gilmar Mendes pela inovação e formação da comissão e apoiaram a continuidade das negociações e a constitucionalidade da lei aprovada.

O coordenador-executivo da Apib, Kleber Karipuna, disse em entrevista coletiva logo após a reunião que o incômodo da Apib não é por conta de números, mas de condições de debate. ”As regras do jogo são desiguais. Querem negociar possíveis termos da Lei 14.701, mas nosso entendimento é de que ela precisa ser derrubada. A gente entende que a Lei precisa ser suspensa, para termos condições mínimas de igualdade nesse debate. Não entendemos, por exemplo, porque trazer a Confederação Nacional dos Municípios para falar de demarcação de terras indígenas”. 

As próximas reuniões estão previstas para os dias 28 de agosto, 09 de setembro e 23 de setembro.

Atropelamento e violências

A sensação de desrespeito às vozes indígenas presentes foi um dos aspectos mais marcantes da reunião.

Kari Guajajara, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), resumiu esse sentimento ao declarar: “A sensação que eu tenho aqui há cinco horas que eu tô aqui é a sensação de que toda vez que nós indígenas falamos alguma coisa é refutada. Qual o valor da voz indígena nessa mesa? Eu acho que um dos propósitos da mediação da conciliação é você ouvir e a sensação que eu tenho é que desde o início que nós chegamos aqui ninguém ouve o que os povos indígenas estão dizendo. Se nós continuarmos nesse atropelamento, isso aqui vai ser marcado na história como uma das maiores violências aos povos indígenas do Brasil”.

Nesse contexto, a Apib está avaliando se continuará ou não participando da comissão de conciliação.   Segundo Kleber Karipuna deixou claro que a continuidade das negociações depende da suspensão da Lei 14.701.

“Estamos entendendo que o Supremo não quer encarar essa discussão agora, não quer se manifestar sobre isso. Por isso, para nós é importante refletir, deliberar, ouvir as nossas bases antes de vir para cá de novo. Da suspensão da lei depende a continuidade dessa conversa, é com base nisso que vamos avaliar se continuaremos na mesa ou não”.

Quer ajudar na luta dos povos indígenas? Você pode fazer a diferença  assinando a petição ‘Marco Temporal Não!’. Nossa meta é alcançar 100 mil assinaturas, que serão entregues ao Supremo Tribunal Federal para fortalecer esse movimento. Vamos juntos defender os direitos dos povos indígenas e garantir que suas terras sejam respeitadas e protegidas. Marco Temporal Não!

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