“Não é só comida, é identidade”: cozinha solidária no Parque das Tribos, em Manaus, luta para fortalecer a cultura dos povos originários

Renata Nitta
Tradução: André Ribeiro e Melissa Harkin

Mesmo em face de situações desafiadoras, pessoas de todo o mundo estão se unindo para construir um futuro melhor para suas comunidades e para si mesmas. Suas experiências não chegam às manchetes, mas oferecem algumas ideias sobre como a humanidade pode viver em um mundo moderno e contrabalançar o sistema capitalista neoliberal. Essas soluções — muitas provenientes da maioria global — podem nos ajudar a reimaginar um futuro alternativo onde combatemos as desigualdades e distribuímos o poder de forma igualitária para que todos possam viver uma vida saudável e digna.

Renata Peixe-Boi, da cozinha solidária Boca da Mata, com a cacica Lutana Kokama © Rodrigo Duarte

No encontro das águas do Rio Negro com o Solimões para formar o Amazonas, localiza-se Manaus, capital do Amazonas, conhecida pelas condições precárias das favelas em rápido crescimento e que carecem de infraestrutura básica. É no primeiro bairro indígena de Manaus, o Parque das Tribos, fundado em 2014 em um terreno abandonado e lar de cerca de 750 famílias de mais de 30 grupos étnicos, que as pessoas estão conectando as gerações mais jovens com suas raízes para ajudar a combater a alienação que sentem no mundo moderno. 

A pandemia da covid-19 atingiu em cheio a comunidade, que sofreu com a alta taxa de mortalidade e a morte de líderes tradicionais. Em todo o Brasil, a pandemia provocou uma crise de fome que ainda perdura, com cerca de 33 milhões de pessoas em todo o país em situação de insegurança alimentar — um problema que o governo ainda não conseguiu resolver. Apesar desses desafios, a comunidade do Parque das Tribos trabalha para o bem coletivo.

Não é só comida; estamos falando de identidade

Renata Peixe-Boi, do grupo indígena Mura, fundou a cozinha solidária Boca da Mata, que oferece refeições saudáveis e equilibradas. Ela ressalta que os alimentos frescos não são financeiramente acessíveis. Muitos moradores da comunidade consomem mais alimentos ultraprocessados, normalmente por causa de insuficiência de renda e da falta de disponibilidade de alimentos frescos ou de condições para mantê-los frescos.

Entretanto, comida fresca não significa apenas uma alimentação saudável; trata-se de uma afirmação da identidade indígena. “Para pessoas imersas nessa cultura, é muito diferente se você comer, por exemplo, mandioca que foi colhida no dia anterior”, disse Renata. “Para os povos indígenas, isso carrega um simbolismo, uma lembrança muito forte que remete ao campo.” Parte das mandiocas e de outros alimentos são cultivados em pequenos terrenos dentro da comunidade, mas a maioria dos produtos frescos é recebida de doadores. 

Mulheres preparando refeições para a comunidade © Rodrigo Duarte

As mulheres indígenas em cenários urbanos do Brasil, como o Parque das Tribos, são muitas vezes migrantes econômicas que deixaram seus lares tradicionais. Esses padrões de migração para a cidade são extremamente comuns e, muitas vezes, resultam da busca por trabalho, educação, saúde e outras infraestruturas. No entanto, a maioria das mulheres que migram para as cidades para trabalhar como empregadas domésticas recebe salários muito baixos e enfrenta diversas situações de racismo, humilhação, assédio e violência.

Consequentemente, a cozinha também é um espaço político de empoderamento, onde as mulheres que vivem na cidade podem trocar ideias e aprender umas com as outras, como mulheres indígenas de diferentes grupos e realidades, além de praticar ou reaprender suas línguas tradicionais (e depois ensiná-las aos seus filhos). Trata-se de um lugar que oferece às crianças e aos jovens a oportunidade de se reconectarem com sua cultura indígena, principalmente por meio da língua e de experiências comunitárias compartilhadas com membros de seu grupo étnico e outros grupos, além de aprenderem sobre a possibilidade de ter uma profissão.

“Os jovens são filhos dessas mulheres que, em sua maioria, deixaram seus territórios quando ainda eram novas e nunca mais voltaram”, explicou Renata. “A cidade não oferece uma possibilidade de haver essas trocas.”

Laços e raízes nos protegem

Além da cozinha, o Parque das Tribos também conta com diversas outras iniciativas que buscam afirmar e valorizar a cultura indígena no cenário urbano. Claudia Baré é uma professora indígena que está trabalhando para criar uma escola indígena especializada na comunidade, onde as crianças possam aprender sobre suas raízes e tradições. Como o Parque das Tribos está localizado na periferia, que é dominada pelo crime de uma das metrópoles mais violentas e com maior índice de desigualdade do Brasil, crianças e jovens estão vulneráveis à coerção do crime.

“Há crianças que não têm acesso à escola e acabam ficando à mercê (do crime). A gente sabe que quando a criança está na rua, pessoas de má índole as levam para o caminho errado […] das drogas, da bebida”, explicou Claudia.

Claudia Baré na Escola Indígena Wakenai Anumarehit © Claudia Baré

A escola também serve de ferramenta para os jovens indígenas formarem suas identidades. Essas afirmações permitem que eles superem o racismo e o preconceito que inevitavelmente sofrem.

“Não é algo que vai deixar de existir, mas você tem que ensinar as crianças, as mulheres, os jovens e os próprios indígenas a se defenderem e a superarem esse preconceito.”

Moradores recebendo alimentos orgânicos durante a pandemia da covid-19 © Rodrigo Duarte

O Parque das Tribos sofre os mesmos problemas estruturais das comunidades urbanas informais de baixa renda em toda a América Latina e no hemisfério sul: pobreza extrema; falta de saneamento básico; e acesso precário à moradia, educação, emprego e oportunidades de lazer.

Para Renata Peixe-Boi, da cozinha solidária Boca da Mata, o Parque das Tribos está na vanguarda da identidade indígena no contexto urbano. “Atualmente existem muitas forças que já expulsaram as pessoas de seus territórios”, explicou. “E hoje temos o Parque das Tribos. É uma realidade e é muito afirmativa.”

Essas mulheres inspiradoras do Parque das Tribos estão nos mostrando o que pode ser alcançado quando priorizamos o bem-estar de todos, principalmente das mulheres, das crianças e dos jovens, em vez do lucro. Pensando nas gerações futuras, elas deram início a uma mudança transformacional em sua comunidade, empoderando mulheres e comunidades indígenas que estão lutando pelo importante princípio da inclusão, justiça e diversidade.

Como as conquistas da Rede ASA, podemos nos inspirar nesse “pluralismo de baixo para cima” para criar mais soluções e construir um caminho para um futuro limpo, verde e justo para nossos filhos, medindo o progresso com base no bem-estar coletivo, e não nos lucros.

Faça parte também dessa solução! Participe do Manifesto pela Agroecologia.

Sem a ajuda de pessoas como você, nosso trabalho não seria possível. O Greenpeace Brasil é uma organização independente - não aceitamos recursos de empresas, governos ou partidos políticos. Por favor, faça uma doação hoje mesmo e nos ajude a ampliar nosso trabalho de pesquisa, monitoramento e denúncia de crimes ambientais. Clique abaixo e faça a diferença!