Em agosto, uma equipe do Greenpeace Brasil esteve no Pantanal e na Amazônia para registrar as histórias de quem sofre e de quem luta contra o fogo. Confira o relato de Ana Clis Ferreira, uma das porta-vozes da organização.
Na primeira quinzena de agosto, estive no Pantanal e na Amazônia, dois dos biomas historicamente mais devastados pelas queimadas e que, em 2024, enfrentam, além do fogo, uma das secas mais intensas dos últimos anos. Apesar das cenas angustiantes que apertavam o coração e literalmente secavam a garganta, encontrei um fio de esperança ao conhecer o trabalho e as histórias das pessoas que, em meio ao caos, atuam na linha de frente há anos e acreditam na força das pequenas ações e do trabalho em comunidade para garantir a proteção da biodiversidade desses biomas e das pessoas que vivem e dependem deles.
Apesar das dinâmicas diferentes, tanto o povo pantaneiro quanto o amazônida enfrentam preocupações semelhantes: rios cada vez mais secos e queimadas cada vez mais frequentes. Esses incêndios não apenas destroem a vegetação e levam os animais à morte, mas também cobrem os estados de fumaça, impactando a saúde das pessoas e até mesmo sua mobilidade, com aeroportos fechados devido à visibilidade reduzida e estradas perigosas.
Desde junho, o noticiário e as redes sociais têm nos alertado sobre a destruição em cadeia que os incêndios no Pantanal vêm causando à sua fauna e flora. Mas, ver e vivenciar isso de pertinho certamente mudou algo dentro de mim, gerando uma mistura de revolta, tristeza e indignação.
Nossa primeira parada foi no Pantanal do Mato Grosso do Sul, onde visitamos os municípios de Campo Grande, Miranda, Corumbá e Aquidauana. Pude conversar com especialistas e conhecer o trabalho de profissionais e instituições que atuam diretamente no combate aos incêndios e resgatando e recuperando os animais vítimas do fogo. Pessoas que, apesar dos desafios de realizarem esse tipo de trabalho, permanecem firmes, pois acreditam que não fazer nada seria muito mais devastador do que enfrentar as cenas que encaram quase todos os dias.
Meu terceiro dia no Pantanal foi um dos mais intensos. A manhã começou agradável no Instituto Tamanduá, em Aquidauana, onde conversei com pesquisadoras e veterinárias que cuidam e reabilitam animais afetados pelo fogo. Também pude ver de pertinho várias araras-canindé, araras-vermelhas e araras-azuis em vida livre, um cena linda, colorida e um pouco barulhenta. No entanto, quando voltamos à estrada, à medida que o dia avançava, a realidade se impôs diante de mim e da equipe que me acompanhava.
Nos deparamos com um cenário apocalíptico na BR-262, próximo a Miranda, onde passamos sete horas bloqueados por chamas que cortavam a estrada e um incêndio que se expandia destruindo toda vegetação ao redor. Apocalíptica, pois foi uma cena que só havia visto antes em filmes de “fim do mundo”, mas diferente desses filmes que geralmente as pessoas entram em desespero, na vida real as pessoas ali, talvez eu incluída, agiam com uma estranha naturalidade enquanto aguardávamos a contenção do fogo pelos bombeiros, brigadistas e autoridades locais.
Crianças brincavam, as pessoas comiam, se hidratavam e conversavam, restaurantes e bares permaneciam abertos, outras pessoas, cansadas da situação, aproveitavam para tirar um cochilo em seus veículos. Tudo isso acontecia enquanto víamos carros dos bombeiros e da Defesa Civil passarem ao nosso lado em alta velocidade e avistávamos aviões tentando combater o fogo à frente. O desespero normalmente esperado em uma situação tão crítica como essa simplesmente não ocorreu, pois, infelizmente, aquilo se tornou uma cena comum para os sul-mato-grossenses.
Quando a estrada finalmente se abriu, além do cansaço acumulado e da sensação de desidratação após horas na fumaça e perto das chamas que alaranjaram o dia e avermelharam a noite, fiquei refletindo sobre toda aquela situação. Ao falar sobre o fogo no Pantanal, geralmente ouço comentários como ‘O Pantanal é resiliente às chamas’ ou ‘O homem pantaneiro sempre usou o fogo tradicionalmente’. No entanto, as mudanças climáticas e o aumento dos incêndios tornaram o bioma, que está cada vez mais seco, mais sensível às chamas, e talvez ele não tenha mais a mesma resiliência ao fogo que tinha no passado, especialmente durante os períodos de estiagem. Além da chegada de uma agropecuária mais industrial e predatória na região, que tem também um papel relevante nesses incêndios.
É importante destacar que, mesmo com a seca, o fogo não ocorre naturalmente, é o ser humano quem o provoca. Iniciados muitas vezes em áreas rurais, para limpeza de pasto e ampliação de área. Essas queimadas, realizadas sem autorização e nesse período de seca extrema, frequentemente saem de controle, gerando imagens devastadoras como as que presenciei.
Essa prática em grandes fazendas, muitas vezes financiada por recursos concedidos por bancos através do crédito rural, não só agrava a situação, mas também compromete ainda mais a resiliência do Pantanal. Onde há fogo, há quem lucre com ele! Bancos e instituições financeiras continuam concedendo crédito àqueles que utilizam o fogo de forma ilegal, contribuindo para essa destruição, enquanto a sociedade e a biodiversidade pagam a conta.
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Nossa última parada no Pantanal foi no Aquário Natural de Bonito, que colabora com o Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal (GRETAP-MS) atendendo animais silvestres resgatados em situação de perigo e vítimas das queimadas, próximo à região. Pronta para me despedir das pessoas que nos acompanharam durante essa semana intensa, lembrei do conselho de uma tia que sempre me diz que tudo o que levamos desta vida são as lembranças, e que a gente tenha sabedoria para sempre valorizar as boas. Certamente, levo boas memórias desses últimos dias. Uma memória marcante que trouxe comigo e compartilho com vocês foi uma frase dita por Paula Helena Santa Rita, bióloga, médica veterinária e coordenadora operacional do GRETAP.
Quando perguntamos se ela acreditava que conseguiria proteger os animais do Pantanal, Paula, visivelmente emocionada, respondeu de uma forma que tocou tanto a mim quanto à minha colega de trabalho: ‘Pelo menos minimizar o impacto, porque toda essa ação, quando a gente vê a dimensão dos acidentes, é um grãozinho de areia, mas a gente chega lá!’. Sim, Paula, a gente chega lá, principalmente com pessoas como você atuando na linha de frente.
Seguindo a fumaça rumo à Amazônia
A despedida do Pantanal não foi fácil, mas nossa jornada tinha que seguir, dessa vez com uma parada conhecida: a Amazônia, mais especificamente Rondônia, na cidade de Porto Velho e região, onde já presenciei cenas assustadoras causadas pelos incêndios florestais. No entanto, nunca havia encontrado a cidade em condições tão precárias em relação à qualidade do ar. A capital rondoniense esteve sob fumaça durante toda minha estadia e muitos municípios seguem cobertos pela fumaça das queimadas, sem sinal de melhora. Penso na população que passa meses respirando este ar altamente prejudicial à saúde.
Comparados a outros estados, os municípios da Amazônia possuem um número reduzido de profissionais da saúde, e aqueles que atuam na região enfrentam diversos desafios. Entre eles, destacam-se as distâncias e as condições climáticas extremas, além das queimadas e fumaça, que agravam doenças respiratórias e cardiovasculares e podem dificultar a mobilidade dos profissionais até seus pacientes, ou a vinda deles até as UBSs e UPAs. Diante desse cenário, buscamos conversar com profissionais de saúde e pesquisadores para compreender como a população tem sido impactada pela fumaça das queimadas.
A Amazônia enfrentou uma seca sem precedentes no ano passado, da qual ainda não se recuperou totalmente durante a temporada de chuvas, e está novamente lidando com uma estiagem severa, o que torna os incêndios ainda mais devastadores. Os mais afetados são povos indígenas, comunidades tradicionais, crianças, idosos e a população mais pobre, que, mesmo sem qualquer relação com o uso criminoso do fogo, acabam pagando a conta por essa devastação
Com a sensação de impotência e indignação ao ver as pessoas dormindo, acordando e vivendo suas vidas imersas nessa fumaça, ciente de que esse fogo é criminoso e, em sua maioria, propagado por grandes fazendeiros, decidimos buscar na região algo que nos lembrasse do ‘grãozinho de areia’ de pessoas que trabalham pela mudança e por formas de produção alternativas à monocultura e à pecuária.
Fiquei surpresa ao descobrir várias iniciativas em Porto Velho e arredores que vão além do agrodestruidor, mas que, infelizmente, não recebem o mesmo apoio financeiro que esses. Fomos calorosamente recebidos por produtores agroecológicos na zona leste de Porto Velho: Seu Nenê e Dona Meire, que fazem a gestão de uma propriedade.
Conversamos muito sobre a história deles e como decidiram seguir uma produção sem veneno e sem a utilização do fogo, enquanto degustávamos o caju e a banana colhidos do pé, suco natural de acerola e um delicioso bolo de mandioca, tudo feito com ingredientes da propriedade, além daquele cafezinho coado na hora. Se não fosse pela fumaça pairando no ar, eu diria que havíamos entrado em outro mundo.
Embora as queimadas no Pantanal e na Amazônia sejam causadas principalmente por ações humanas, a crise climática agrava as condições, tornando os eventos extremos, como secas prolongadas, mais frequentes e intensas. Portanto precisamos de mudanças urgentes, e isso inclui todo o sistema que continua bancando e fortalecendo quem destrói a natureza.
Uma das soluções é impedir que recursos financeiros cheguem a quem destrói nossos biomas. O crédito rural, que conta com recursos públicos, tem sido usado para financiar desmatadores e quem usa o fogo de forma ilegal. E, não sei se você sabe, mas parte do nosso suado dinheirinho é destinado ao crédito rural, e não podemos aceitar que esses recursos sejam usados pelo agro destruidor.
O Greenpeace Brasil lançou o relatório “Bancando a Extinção: Bancos e Investidores como Sócios no Desmatamento”, onde explicamos essas conexões. Dentre as recomendações, falamos na importância dos bancos negarem crédito a quem usa o fogo de maneira ilegal.
Juntos, podemos pressionar o setor financeiro a melhorar os critérios de concessão de crédito, contribuindo para a preservação da nossa biodiversidade e garantindo um futuro mais seguro, justo, verde e pacífico para todos.
Sem a ajuda de pessoas como você, nosso trabalho não seria possível. O Greenpeace Brasil é uma organização independente - não aceitamos recursos de empresas, governos ou partidos políticos. Por favor, faça uma doação hoje mesmo e nos ajude a ampliar nosso trabalho de pesquisa, monitoramento e denúncia de crimes ambientais. Clique abaixo e faça a diferença!
Discussão
Relato incrível dessa sua experiencia pessoal nessa viagem e como a narrativa explora tanto o impacto ambiental, quanto a resistência das comunidades e organizações que atuam para preservar essa biodiversidade. Além disso também mostra como o sistema financeiro perpetua essa destruição. Lindo trabalho :)