Em setembro, uma equipe do Greenpeace Brasil esteve na cidade de Tefé, no Amazonas, para registrar as histórias de quem sofre os impactos da seca extrema dos rios amazônicos. Confira o relato de Rômulo Batista, porta-voz da organização.
Por Rômulo Batista
Na segunda quinzena de setembro, participei de mais uma expedição de campo pelo Greenpeace Brasil, mas essa não é uma viagem qualquer é a segunda vez que retornamos ao médio Solimões em menos de um ano e pelo mesmo motivo: a grande seca que assola a maior bacia hidrográfica do mundo, inclusive o maior rio do mundo, o Amazonas.
Eram 4h30 da manhã, do dia 16 de setembro, quando acordei bem cedo pois tinha que regar minhas plantas, já que iria ficar fora por vários dias e não poderia contar com a chuva, aliás fazem tantos dias que nem sei mais quantos são que não vejo uma gota de verdade por aqui. Chegando no aeroporto com o nascer do sol, o dia já começou meio cinza, mas infelizmente não eram nuvens de chuva ou mesmo neblina que confundia a visão, era a fumaça das queimadas no ar em Manaus.
Não era o pior dia que tivemos esse ano e longe de ser um dos piores que tivemos ano passado, mas mesmo assim ela estava lá presente. Mais um voo cancelado e sem muita explicação. Pra gente fica sempre a dúvida: será fumaça, será algum problema no aeroporto, a nós foi informado a necessidade de uma manutenção na aeronave.
Volto pra casa, durmo mais uma horinha e já fazendo meu café, recebemos o pedido de agilizar a nossa vinda pois não era possível ter certeza da viagem do avião de linha para o outro dia. Decolamos com o nosso Cessna por volta das 13h30 rumo a Tefé, desse dia que começou cedo e cinza. E que mais cinza foi ficando conforme subíamos e podíamos ver do alto a verdadeira extensão da fumaça, foram uma hora e quarenta e cinco minutos voando dentro dessa névoa e o cinza não estava só no ar, mas no chão onde um dia foi floresta, depois destruída, cortada e agora queimada, transformada em pó e em cinzas.
Cinza também são as áreas em torno dos rios e lagos secos que vimos ao longo da viagem, que contrasta com o verde da floresta e das gramas e arbustos que nascem nessa terra seca e esturricada. O cenário que presenciamos ano passado no mês de outubro, agora se repete, mas em setembro. E o que todos dizem por aqui é que não sabem o que está acontecendo, o por que disso estar acontecendo e por que de novo “com a gente”. Fico tentando explicar usando a minha linguagem por vezes técnica demais, as vezes chata demais, quando quase sempre acabo ouvindo “é a natureza / floresta / rios, nós maltratamos muito eles e agora nós que estamos sofrendo” ou alguma outra versão nesse sentido, eu apenas aceno com a cabeça e concordo com a sabedoria que vem da floresta.
No final do dia, que começou cedo e cinza, vou dormir desejando dias mais coloridos, com mais chuvas, menos fumaça, menos cinza e principalmente menos sofrimento para esse povo que vive na e da Amazônia, que menos contribui para as mudanças climáticas e que tanto tem sofrido com seus efeitos extremos nos últimos anos.
Acordei mais uma vez em Tefé no segundo dia da expedição. Essa é a segunda vez que retorno a mesma cidade banhada pelo rio Solimões em menos de um ano, famosa por entre outras coisas, por seu grande lago e a quantidade de botos que existem ou ao menos existiam antes da minha visita anterior. Logo cedo fomos buscar os colegas e alguns jornalistas que estavam acompanhando a nossa expedição para ampliar ainda mais a notícia da seca e, principalmente, as vozes dos povos indígenas e população tradicional que de novo, são os mais afetados por esse evento climático extremo: a estiagem ou como preferem chamar aqui a grande seca.
Nossa primeira parada foi na recém estreada sede da APAFE – Associação dos Produtores Agroextrativistas da Flona de Tefé e Entorno, uma associação que representa mais de 1.600 famílias, quase sete mil pessoas de diversas populações tradicionais como ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais e também quilombolas. Lá, fomos recebidos pela Dorimar Rodrigues, vice-presidente da APAFE, que nos contou as dificuldades que as comunidades estão passando, em especial as mais distantes, como o simples fato de ir e vir, viagens que antes demoravam horas e hoje podem levar dias num constante atolar, desatolar e empurrar a canoa no barro e areia que se formam nos rios e lagos, o preço das mercadorias essenciais, itens de alimentação (como o frango que chega a custar R$ 50 reais e um pacote de açúcar mais de R$ 7 reais), remédios e o preço do combustível que já chega mais caro na sede do município e dispara nas comunidades. Mas isso Infelizmente ainda não é o pior!
O peixe, principal fonte de proteína dos povos da floresta que junto com a farinha de mandioca formam a sua refeição básica diária, “tá muito ruim, não se recuperou da seca passada e agora está faltando até para comer”. Agora não garante mais uma renda mínima para milhares de famílias que dependem dessa atividade. E a farinha também está pouca, já que as “roças” não se desenvolveram bem depois da seca do ano passado e da falta de chuva desse ano, “teve roçado, que a maniva nem brotou, perderam tudo”, sem maniva desenvolvida, sem mandioca, sem mandioca, sem farinha e todo mundo sabe que amazonense não come sem farinha.
Depois conversamos também com o sr. Tomé Kambeba – Delegado de Educação Indígena do Médio Solimões. Ele nos trouxe uma informação muito preocupante de que na região onde ele representa já são mais de 800 crianças (indígenas) sem nenhum tipo de aula por conta da seca e falta de acesso aos pólos de ensino. Outras milhares estão tendo que estudar somente com apostilas e livros, sem o contato com os professores e colegas, igualzinho na época da pandemia de COVID-19.
Também falamos com a Anna Júlia Carneiro Cruz, liderança indígena da etnia Kambeba e representante da AMIMSA – Associação de Mulheres Indígenas do Médio Solimões. Ela nos contou que quem mais sofre com essa seca são as mulheres, pois são elas, na maioria das vezes, que tem que carregar água da beira até em casa ou mesmo por conta de outros afazeres, “tem que ser muito cedo pois depois da 9h ninguém aguenta a “quentura” da areia, do barro e d’agua”.
No período da tarde fomos fazer um sobrevoo em lugares que passamos no ano passado. O cenário foi o mesmo encontrado, infelizmente, só com um mês de antecedência. Lagos e rios secos e a imensidão do rio Solimões, com mais da metade de seu leito, tomado por areia. A cena que mais me marcou foi uma balsa e seu empurrador encalhados no meio do rio… esperando seguir viagem para quem sabe, quando a água retornar.
Antes de deitar fui dar uma última volta fora do meu quarto e fui surpreendido por uma imagem que confesso não estava esperando, um eclipse parcial da lua que aparecia no meio da fumaça. Lembrei imediatamente de duas coisas: as histórias de assombração que meu avô me contava, as minhas preferidas eram aquelas que envolviam a lua cheia. E também quando combinávamos de ir no rio, que banha a cidade onde nasci, para nadar. “Mas vô será que não vai chover?” Ele sorria e me falava: “Fiô, a chuva só vem quando a lua muda, e a lua já mudou faz tempo””. Bom, a lua mudou, peço que na sua imensa sabedoria de quem foi criado no interior ele esteja mais uma vez certo. Naquele dia fui dormir pensando quando a chuva de verdade iria chegar.
Infelizmente o dia iniciou sem chuva. De manhã, nós fomos acompanhar o monitoramento do Lago Tefé que é realizado pelo ICMBio e o Instituto Mamirauá. Eles medem parâmetros físico-químicos da água, junto a temperatura, para entender como essas mudanças podem afetar os animais, em especial, peixes e mamíferos aquáticos que vivem no lago. Ano passado, dezenas de botos acabaram morrendo por conta da seca. Segundo os especialistas, as águas do lago ainda não atingiram as marcas recordes do ano passado, quando a temperatura ultrapassou os 40°C.
Além do monitoramento, também passamos pelas margens do lago em busca de qualquer indício de animais mortos. Infelizmente acabamos nos deparando com um filhotinho de Boto Tucuxi morto que foi prontamente levado para necropsia no Instituto Mamirauá.
Depois do almoço, nossa equipe foi até a comunidade São Francisco do Arraia, que está localizada na margem do lago de Tefé, onde conversamos com ribeirinhos sobre as dificuldades que eles têm passado devido à seca. Todos possuem uma opinião em comum: a seca deste ano está pior e veio mais cedo do que em 2023. Os relatos são profundos e demonstram que aqueles que sempre cuidaram e viveram em harmonia com as florestas, e que menos contribuíram com as emissões dos gases do efeito estufa, são os que estão sofrendo as maiores consequências da crise climática, afetando todo o modo de vida tradicional.
O último dia de nossa expedição amanheceu com a cidade de Tefé tomada pela fumaça das queimadas intensas que acontecem no sul do estado do Amazonas e arredores do município. Decolamos do aeroporto de Tefé, junto com os jornalistas, para percorrer trechos do rio Solimões até a cidade de Coari. Vimos mais uma vez o leito do rio tomado por extensos bancos de areia, em alguns trechos menos de um terço do leito tinha água e olha que estamos falando do maior rio do mundo.
Sobrevoamos a Reserva Extrativista Catuá-Ipixuna e vimos a dificuldade das comunidades que estão muito afastadas da água e onde o Paraná (canal que liga o rio até o lago) está praticamente seco, o que dificulta o acesso das pessoas ao rio Solimões. Importante lembrar que os rios na amazônia além de serem fonte de vida, alimentação, água para consumo e afazeres diários são as ruas e rodovias da Amazônia, ou seja, quando o rio seca o acesso a sede do município fica muito difícil.
Depois fomos para o Lago de Coari e vimos diversas comunidades na beira passando pelas mesmas dificuldades de acesso à água, tendo que utilizar os pequenos igarapés já com risco de secarem. Um problema que ameaça povos indígenas na Terra Indígena Cajuhiri Atravessado, que fica dentro do Lago.
Finalizamos a expedição indo em direção a Manaus, onde a paisagem distópica dos lagos, rios e igarapés, quase completamente secos na maior bacia hidrográfica do mundo, se misturava à fumaça no ar da capital amazonense. Um cenário triste e desolador! Isso me fez lembrar que estamos vivendo não uma, mas sim duas grandes crises climáticas na Amazônia: a seca e as queimadas que são duas faces da mesma moeda das mudanças climáticas. Elas são reais, causadas pelo ser humano e não um problema para daqui 10-20 anos… um problema atual que cabe a cada um de nós agirmos para que possamos, sendo o mais egoísta possível, garantir o nosso futuro como espécie, pois como dizia a Irmã Doroty, mártir da luta na Amazônia e seus povos, “a morte da floresta é o fim da nossa vida”.
Seca extrema, fogo, fumaça, enchentes… enfrentamos uma crise ambiental sem precedentes que coloca a humanidade em risco. Por isso, é preciso que o poder público aja agora, e com a intensidade que a situação pede, para proteger nossa saúde, a biodiversidade, o clima e o amanhã. Assine a petição para cobrar de governos e legisladores do Brasil ações incisivas para combater as mudanças climáticas!
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Discussão
É impossível "combater o aquecimento global". A Terra já passou por centenas de aquecimentos, a maioria deles muito mais intensos que o atual aquecimento e em épocas em que não havia atividade industrial, ou seja, sem CO2 antrópico. O aquecimento resulta da maior emissão de energia pelo sol, sem nenhuma relação com CO2, antrópico ou natural. O mundo já gastou U$ 2 trilhões para "mitigar o aquecimento", mas o resultado foi zero, pois nada foi mitigado. Até quando essa historinha fake do CO2 vai continuar?