A líder comunitária de Caranguejo Tabaiares, situada na região central de Recife (PE), conta sobre a luta de sua comunidade pelo território e contra a insegurança alimentar.

Sarah Marques, cofundadora do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, em Recife (PE).

“Não acho bonito fila de gente para receber comida.” Não, não é bonito mesmo. Concordamos com Sarah Marques, que foi demitida em plena pandemia e atua como líder comunitária de Caranguejo Tabaiares, situada na zona oeste de Recife (PE). Concordamos porque escancara, assim como o esgoto a céu aberto, a precariedade em que muitos seres humanos ainda (sobre)vivem. Mas, como a fome é algo que vai muito além do estômago, a notícia boa é que a feiura dessa fila também tem sua beleza: “Nos deu esperança”, resiste Sarah, que tem 40 anos e é mãe solteira dos gêmeos Juliana e Rafael, de 15. Estamos aqui falando da doação de 200 cestas agroecológicas que a comunidade recebeu da campanha emergencial “Comida para quem precisa de comida de verdade”, que o Greenpeace está realizando com alguns parceiros durante a pandemia. Ao todo, a campanha já doou mais de 13 toneladas de alimentos agroecológicos. O trabalho é grande, e só é possível graças à solidariedade de pessoas de todo o Brasil. As doações podem ser feitas para o crowdfunding Agroecologia contra a fome, que está acontecendo neste momento. 

Saúde no prato: alimentos agroecológicos doados para a comunidade

Não é sobre beleza que se trata. É sobre resistência: às vésperas da pandemia, a população do Caranguejo já estava cansada de guerra. Algumas pessoas haviam acabado de conseguir reocupar suas próprias casas. Trata-se de uma comunidade centenária. Então, imagine só – “re-ocupar” a própria casa… A história é longa, mas as 280 famílias, cerca de cinco mil pessoas, que hoje vivem no Caranguejo estão à margem do Rio Capibaribe, uma região central da cidade de Recife que sofre com os olhos gordos e grandes de um lobo bem mau que a gente bem conhece: a especulação imobiliária. “Meus pais e avós que aterraram aqui, a gente fez esse chão e essas casas com o lixo que o povo jogava. Sempre vivemos dessa lama. Eles não acham bonito. Mas é vivo. O modelo das palafitas (ainda há duzentas na comunidade) é vivo, tem que pegar a lama, colocar na estrutura, deixar respirar, senão a casa cai. Eles não estão nem aí para o meio ambiente. O meio ambiente somos nós. A gente usa o que eles acham feio”, relata Sarah.

“Não queria me envolver e ser liderança. Mas aqui ou eu vi alguém nascer ou me viram nascer. Estou aqui há 40 anos”, conta. Ela não teve mais escolha no dia em que viu os técnicos da prefeitura na casa de dona Maria, uma idosa da comunidade, impelindo-a a assinar papéis relativos à sua remoção para um conjunto habitacional a 7 km dali. “Foi nesse dia de dona Maria que dei um grito. Comecei a gritar. Chamo de dia do grito. Saí gritando. ‘Minha gente, querem tirar a gente daqui. A gente não pode deixar não’. Fui pras redes sociais. ‘Não desocupe Caranguejo’. Comecei a mobilizar as lideranças daqui, o povo da igreja, pastor, abaixo-assinado, Ministério Público, Direitos Humanos… Fiquei batendo, conseguimos várias audiências com a prefeitura, fizemos cinedebate, roda de conversa. Barramos o cadastramento, não deixamos o pessoal da prefeitura nem medir”.

Em meio a essa história recente, nasceu o Coletivo Caranguejo Tabaiares, que irradiou mundo afora tais urgências. A luta central era revogar um decreto que visava tornar aquele território como de utilidade pública. Apesar de o nome parecer bonito, isso significaria que todo o projeto a ser desenvolvido com base na classificação da região como ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) iria por água abaixo. Depois de tanta mobilização conseguiram, com muito suor e saliva, invalidar o decreto. “Conseguimos o direito de continuar lutando”, atesta Sarah.

“Quando a gente estava começando a respirar, veio a pandemia.” Com ela, o lockdown em casas insalubres, falta d´água, violência, menos emprego, menos dinheiro. E ainda menos comida no prato. Isso tudo agravado por um ingrediente que torna a vulnerabilidade um palavrão ainda mais feio, e que só nos mostra mais do nosso triste mesmo: a maioria das famílias ali é monoparental, sustentada por mulheres negras.

“Não damos conta. Muita gente aqui vai pedir comida no sinal, traz restos de restaurantes. Passamos muito tempo comendo alimentos vencidos, que não são dignos. Muitas famílias daqui vivem pegando a xepa da Ceasa, cortando as verduras, amassando. Aqui comemos o que dá”, informa. O Coletivo tem centrado forças nessa questão da insegurança alimentar que se acirrou, recebendo cestas, quentinhas, cartões de alimentação. Além dessas iniciativas, outras duas importantes estão brotando, com o objetivo de subsistência e geração de renda: uma horta e o projeto de uma cozinha comunitária. “Muita gente aqui sabe cozinhar super bem porque sempre cozinhou na cozinha dos outros. Se você chegar com qualquer ingrediente aqui, você consegue pratos sofisticadíssimos, desses de casas de festa, de restaurante”, garante Sarah. 

Desesperadora, a realidade da fome afetou 19 milhões de brasileiros no final de 2020, segundo estudo realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). E mais da metade da população, cerca de 117 milhões de pessoas, sofreu algum grau de insegurança alimentar.

“No dia em que recebemos as 200 cestas da campanha do Greenpeace com alimentos agroecológicos, foi muito forte a mobilização. O caminhão não chega aqui em casa. Todo mundo foi carregar, mulher, menino… O povo carregando as cestas para meu terraço. Carregando com fé de que depois iriam receber. Vi uma moradora daqui que é bem magrinha carregando com uma força! Vi quando o povo foi dividindo as cabeças de peixe. Não precisava dizer ‘fulano precisa, fulano não precisa’, o povo foi dividindo”, conta Sarah, emocionada.

A união e a solidariedade fizeram a força. Mesmo em uma situação extremamente difícil, a comunidade conseguiu se organizar para compartilhar as doações. “Aqui tem gente que precisa mais e gente que só precisa. Não é fácil distribuir, não ser injusta entre quem está com mais ou menos fome. A gente tenta passar para as pessoas aqui na comunidade que é muito ruim você ter e os outros não, principalmente crianças”, diz Sarah. E ela coloca isso em prática: “eu hoje cozinho muito, porque minha mãe sempre cozinhou muito. Na comunidade você não vai ver ninguém que cozinhe com umas panelinhas, de pouquinho. As pessoas sempre cozinham a mais, dão ou recebem um pouco de feijão do vizinho”.

“Para as mães que têm como alimentar seus filhos, eu falaria sobre como é difícil para uma mãe ir dormir sem saber o que vai dar a seus filhos no dia seguinte. Por isso é muito importante contribuir. A fome dói e esse sono não vem.”

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