Essa é nossa nova realidade climática?

Ruas alagadas no Bairro Ipanema, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Ruas alagadas no Bairro Ipanema, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Situações catastróficas como as inundações que acompanhamos nas últimas semanas no Rio Grande do Sul ficarão ainda mais constantes nos próximos anos. De acordo com especialistas, a frequência desses desastres já está mais acirrada. E se você completou mentalmente a palavra “desastres” com “naturais”, temos que te contar que o que está acontecendo não tem nada de natural. 

O desequilíbrio das chuvas é mais um resultado dos efeitos da emergência climática que vivemos globalmente. Só em 2023, o Brasil experimentou 12 eventos climáticos extremos, de acordo com relatório da ONU. Foram cinco ondas de calor, três chuvas intensas, uma onda de frio, uma inundação, uma seca e um ciclone extratropical. Nove destes eventos foram considerados incomuns e dois sem precedentes. 

O que acontece agora no Rio Grande do Sul, assim como os eventos do ano passado, são fenômenos da natureza agravados pela crise do clima. No fim de abril desse ano, um bloqueio de alta pressão sobre o sudeste e centro oeste impediu que as frentes frias vindas do sul da América do Sul subissem e também canalizou a umidade que sai da amazônia para mesma região, o que fez as chuvas caírem sobre o sul. Isso não seria, necessariamente, uma catástrofe, “mas aí vem o efeito do aquecimento global: com os oceanos quentes, há excessiva evaporação de água e, portanto, muito combustível para as chuvas”, explica o climatologista Carlos Nobre, cientista e idealizador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). 

Soma-se o fato do Rio Grande do Sul ser um dos estados mais desmatados do Brasil e o resultado são as inundações de cidades e transbordamentos de rios ao longo da região. “Se a mata atlântica estivesse preservada, assim como a mata ciliar ao longo dos rios, diminuiria muito a erosão do solo que lança a lama nas águas. A quantidade de chuva ainda seria muito alta, mas quando há essa vegetação 20 a 30% da água fica retida no terreno, então essa seria a mesma quantidade a menos de inundação”, afirma Nobre. 

Acabar com o desmatamento é a principal contribuição do Brasil

O desmatamento é, no Brasil, o principal fator de influência para a emissão de gases de efeito estufa (causadores do aquecimento global que está na raiz da crise climática). É, portanto, essa a variável que merece nossa maior atenção. “Em outros países, a matriz energética, a queima de combustível fóssil, é a principal fonte de emissão de GEE, então é o elemento de mudança. Aqui, a contribuição mais importante estaria relacionada a zerar o desmatamento, não em 2030 mas o quanto antes”, explica Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace Brasil.

A floresta é a principal responsável que temos por armazenar carbono, por exemplo no tronco das enormes árvores. Se ela está de pé, a captura e armazenamento de gases é efetiva. Por outro lado, durante o processo de desmatamento, muitos seres vivos morrem e sua decomposição emite gases. Além disso, ao cortar e queimar extensas áreas, mais GEE são emitidos. 

Como sabemos, a crise climática é causada e mantida por modelos de produção e consumo insustentáveis. No Brasil isso está relacionado majoritariamente ao uso da terra, à produção agropecuária. “Desmatamos, queimamos e transformamos em pasto para pecuária bovina. Há na Amazônia muito gado de corte em áreas desmatadas, por exemplo”, conta Batista. Igor Travassos, coordenador da Frente de Justiça Climática do GPBR, ainda destaca que existem 280 milhões de cabeças de gado e 205 milhões de pessoas no país – é mais gado que gente. E das áreas abertas para plantação de milho e soja, grande parte serve de ração para os animais. 

A seca na Amazônia é um fenômeno complexo que é causado por uma combinação de fatores, incluindo o desmatamento, as queimadas e as mudanças climáticas. Quando o desmatamento reduz a capacidade da floresta de absorver e manter a água isso contribui para a seca. Ou seja, a forma como o desmatamento e as queimadas acontecem, especialmente na Amazônia, é a uma só vez causa e efeito da crise climática. 

Fica evidente que conservar os biomas e reflorestar grandes áreas com vegetação natural em especial margens de rios e corpos d’água, inclusive urbanas, é a estratégia  mais importante que temos à mão para desacelerar a frequência e intensidade dos eventos climáticos extremos no país. 

Como a tese do Marco Temporal se relaciona com tudo isso? 

A tese é defendida por proprietários de terras que querem estabelecer que os indígenas só teriam direito às áreas que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal) ou que estavam em disputa judicial naquela época. Os povos indígenas e seus aliados, por sua vez, defendem que seu direito à terra é originário e anterior ao próprio Estado, não podendo haver uma data limite às reivindicações sobre suas terras ancestrais. Argumentam, ainda, que a tese do Marco Temporal desconsidera e desrespeita hábitos nômades de algumas etnias. 

Em setembro de 2023, um julgamento do Supremo Tribunal Federal invalidou a tese. Agora, ainda sem data marcada, a discussão acerca do Marco Temporal voltará ao plenário do STF. “O pano de fundo dessa discussão, é abrir territórios  indígenas para determinadas atividades, construir estradas, explorar atividade mineradora”, afirma Jorge Oliveira, coordenador da Frente de Povos Indígenas do Greenpeace.

Além de ser inconstitucional e uma ameaça aos povos indígenas, a tese pode representar um agravamento das causas da crise climática, que provoca situações como a que vemos agora no Rio Grande do Sul. “O modelo de expansão eterna da agricultura e pecuária é insustentável, aumenta desmatamento, emissões e nos prejudica a todos, coletivamente. Marco Temporal é o setor do agronegócio querendo crescer a qualquer custo”, reforça Carlos Nobre.  

Oliveira lembra que já está provado que são as terras indígenas que melhor defendem a biodiversidade e as florestas no mundo. “É nelas que as taxas  de desmatamento são sempre menor. Se quisermos mitigar a crise climática, precisamos manter de pé a floresta e garantir a saúde e a integridade desses territórios”, defende.

O que fazer diante dessa complexa crise?

Os eventos climáticos extremos, como grandes incêndios florestais, secas extremas, tempestades e enchentes catastróficas, estão se tornando mais frequentes e intensos devido às mudanças climáticas. Essas crises podem agravar ainda mais a saúde pública, a insegurança alimentar e a instabilidade econômica, aumentando o desespero e a descrença nas instituições. No entanto, esses eventos também podem catalisar uma mudança radical na percepção das pessoas sobre a necessidade de transformações profundas no sistema atual.

Embora cada emergência climática exija respostas específicas, é fundamental manter o foco na conscientização das pessoas sobre as causas e soluções para as mudanças climáticas. É preciso promover alternativas ao modelo econômico atual e fortalecer alianças com comunidades cuidadoras da natureza.

Para Oliveira, isso pode ser feito por meio de manifestações contra o Marco Temporal e a favor da demarcação de territórios indígenas. “Essa tese é genocida, tem potencial de provocar mortes e extermínio de povos inteiros. A luta desses povos é atrelada à terra, onde se consegue manter tradições e hábitos”, diz. 

“Do mesmo jeito que a gente precisa mitigar e adaptar as cidades para a crise climática, o Congresso Nacional precisa se adaptar à nova realidade que estamos vivendo. Isso significa que o legislativo e o executivo devem adotar medidas que protejam mais as florestas e as populações que as preservam. Além disso, é preciso atenção especial para as populações mais afetadas por esses eventos climáticos extremos, que são a população preta, periférica, indígena e outras populações tradicionais, historicamente os que menos colaboraram para emissões dos gases do efeito estufa”, complementa Rômulo Batista. Segundo ele, nossa contribuição principal, como nação, é defender – em alto e bom som – que o Brasil valorize a natureza, respeite seus povos originários e diga não à destruição ambiental.  

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