Acabar com as diferenças impostas pela desigualdade tem a mesma urgência que adaptar as cidades à nova realidade do clima 

Moradores da Vila Sahy, em São Sebastião, carregam móveis para salvar o que restou das casas mais impactadas após os deslizamentos da madrugada de 18 para 19 de fevereiro de 2023. © Diego Baravelli / Greenpeace

Desde o começo deste ano, temos comunicado sobre como a solidariedade é fundamental em momentos de calamidade pública como a que aconteceu recentemente no litoral norte de São Paulo. Uma tragédia que fez com que moradores perdessem a casa, familiares e, temporariamente, o rumo da vida após deslizamentos que desenharam imensos caminhos de terra e troncos caídos sobre casas que nem se vê mais em algumas ruas da Vila Sahy, o bairro mais atingido de São Sebastião após as chuvas que começaram na noite de 18 de fevereiro. 

“Depois do ocorrido, eu e meu marido ficamos completamente desnorteados. Eu andava pra cima e pra baixo com uma mochila e, por uma semana, dormimos em um carro emprestado porque o nosso encheu de água”, relata Fernanda Fischer, dona de uma sorveteria e uma das moradoras que perdeu a casa com os deslizamentos na Vila Sahy. Ela segue sem previsão de quando vai conseguir reabrir a loja e comenta a preocupação com as contas a pagar, que não esperam a situação melhorar.

Temos exposto também ao longo dos anos que não são apenas as fortes chuvas que precisam estar sob os holofotes, mas sim a mão ausente do poder público que se comporta como se não tivesse ferramentas suficientes para agir antecipadamente frente a uma realidade imposta pela crise climática. 

A culpa não é de quem teve a casa soterrada ou de quem perdeu amigos e familiares. O poder público historicamente privilegia e destina a um grupo seleto de pessoas, majoritariamente brancas e detentoras do poder econômico, direitos como moradia digna, segura, serviços de saneamento básico e outros que deveriam ser disponibilizados a toda a população. Às pessoas negras, especialmente mulheres chefes de família, populações indígenas, periféricas e comunidades tradicionais do país, ele geralmente vira as costas e, por ora, segue impune frente ao abandono de suas obrigações para garantir moradia digna e evitar novas perdas.

“Para mim, que moro aqui, eu sinto na pele a tragédia disso tudo porque eu não posso nem imaginar morar na Barra do Sahy. A Barra do Sahy é um lugar de elite e o metro quadrado de um terreno lá deve valer o terreno inteiro da quebrada (onde estão as casas atingidas pela lama). Eles (o poder público e o poder econômico) só querem a gente aqui enquanto a gente puder servir. Eles separam o branco, com suas casas vazias, da gente. E eu não nasci para servir”, protesta Flávio Franklin, músico, artista visual e um dos moradores que teve a casa interditada.

E antes que haja qualquer equívoco na interpretação dessa fala, Flávio está longe de se fazer de vítima. Ele é protagonista de sua luta pelo direito de ocupar o lugar que ele quiser na sociedade. Ele tem consciência de uma realidade pautada pelo racismo e que se soma às consequências das tragédias ambientais. E mais, Flávio indica soluções necessárias.

Eu quero viver dignamente. Eu tenho esse direito. Existem vários terrenos ali na Barra do Sahy que o poder público poderia comprar e destinar para as pessoas que precisam morar com segurança. Mas eles não têm esse interesse, pois só pensam na especulação imobiliária. Será que ninguém se dá conta de que é a gente que movimenta a economia local enquanto muitas casas ficam vazias? A gente sim deveria ser prioridade”, defende. 

Mas cadê o poder público para ouvir o Flávio, a Fernanda, a população e, junto com essas pessoas, elaborar soluções e colocá-las em prática para tornar o bairro seguro?

Solidariedade desde o primeiro dia

Sem jamais deixar de lado a importância de pressionar o poder público por políticas públicas que evitem novas tragédias, a solidariedade tem seu papel. Ela fez e faz toda a diferença para quem enfrentou uma madrugada com chuvas de proporções sem igual num acumulado de 24 horas. 

Após os deslizamentos de terra, a Vila Sahy e outras regiões impactadas só podiam ser acessadas pelo mar.

“A comunidade foi o ponto-chave desde o primeiro momento. Não tinha como ninguém chegar. Tudo aconteceu na madrugada e o primeiro helicóptero que veio para começar a socorrer as vítimas chegou quase duas horas da tarde. E nisso, os moradores, a comunidade em si já tinha trabalhado muito”, relata Fernanda Fischer.

O grupo de voluntários do Greenpeace em Bertioga se uniu à população poucos dias após a tragédia. Além de registrar e denunciar o cenário de tristeza, angústia e injustiça, eles e elas dedicaram esforços para contribuir com a remoção da lama de casas e ruas, e com o carregamento de móveis junto a moradores que tentavam salvar o que estava ao alcance nas casas mais impactadas – apenas alguns tinham para onde levar e guardar móveis e outros pertences, graças à solidariedade de parentes e amigos. Ajudaram também com a distribuição de alimentos agroecológicos e kits de limpeza comprados com as doações.

“Nesse momento de crise, a gente viu que toda ajuda é bem-vinda. Desde a mais pontual até as necessidades que seguem sendo urgentes, como a luta por justiça. Ao mesmo tempo que essas pessoas estão muito fragilizadas, elas possuem uma força enorme para enfrentar tudo isso. Todos querem e precisam reconstruir suas vidas”, comenta Raphael Roberto, do grupo de voluntários de Bertioga.

O problema não acabou

Após 15 dias do desastre, quando estive na Vila Sahy acompanhando o trabalho do grupo de voluntários, ainda havia moradores incansáveis removendo a lama de casas e ruas. As necessidades continuavam sendo muitas, inclusive de apoio psicológico. Para Fernanda, que passou uma semana dormindo no carro, participar de ações de solidariedade resgatou um rumo para a vida nesses dias ainda tão desafiadores.

“Está todo mundo precisando de um suporte psicológico, financeiro, físico. A gente está de pé por Deus e porque é um ajudando o outro, caso contrário, ninguém teria mais forças”, desabafa. 

A principal pergunta que todo mundo fazia continuava sem resposta. E agora? Quem perdeu a casa, para onde vai? As pessoas abrigadas em pousadas, hotéis e colônias de férias por meio de uma parceria dos governos municipal, estadual, federal e iniciativa privada, expressavam angústia pela falta de diálogo e resposta – e aqui, mais uma prova de que a ação só chega quando a tragédia já aconteceu. Uma senhora relatou que não tinha ao menos itens de limpeza para limpar o quarto onde estava com a família. Enquanto isso, profissionais identificados com coletes da prefeitura de São Sebastião instalavam placas de “interditada” em algumas das casas. Os moradores não entendiam o que aquilo de fato significava. Pairava também no ar o medo das doenças geradas pelo contato com a lama e a água contaminada.

Moradores da Vila Sahy, em São Sebastião, carregam móveis para salvar o que restou das casas mais impactadas após os deslizamentos da madrugada de 18 para 19 de fevereiro de 2023. © Diego Baravelli / Greenpeace

O momento é de luto, mas também de luta

Evanildes Andrade, presidente da Associação de Moradores da Vila Sahy (Amovila), conta que há 20 anos luta junto ao poder público por regularização fundiária e planejamento urbano para a região com a participação da população. 

“A gente vem há muito tempo buscando diálogo com a prefeitura, com a Secretaria de Meio Ambiente, participando de audiências públicas, numa atuação intensiva, inclusive junto com outras organizações, por uma série de políticas públicas, entre elas, de habitação. Em muitas reuniões ao longo dos anos, nós alertamos que não adiantava a prefeitura vir tapar buraco ou fazer uma pavimentação se não tivesse uma regularização fundiária que garantisse moradia segura para quem precisa morar aqui”, diz Evanildes.

Ela destaca também que essa é uma tragédia que poderia ter sido evitada.

“Nessa nova gestão, nós até sentamos com a prefeitura para conversar, apresentamos o mapeamento que temos da área, um diagnóstico dos riscos e até apontamos uma área sugerindo que fosse comprada para a construção de casas seguras para as pessoas em áreas de risco. Infelizmente, não vimos nenhuma ação concreta e o que testemunhamos foi a negligência do poder público frente a uma tragédia anunciada”, protesta.

Nesta semana, a Amovila e moradores da Vila Sahy reuniram-se com a Defensoria Pública com o objetivo de “traçar caminhos para garantir direitos que até agora não foram formalmente garantidos. Ninguém vai derrubar nenhum imóvel desta comunidade sem antes passar minuciosamente por laudo técnico com aprovação do dono do imóvel, e o mesmo ser ressarcido”. O posicionamento foi publicado nas redes sociais da Associação.  

Para que se faça justiça às pessoas impactadas e se elabore soluções, é inegociável ouvir quem está no território. Para que as cidades se tornem seguras, elas precisam ser adaptadas à nova realidade do clima. Ouvi de muitos moradores que não adianta propor habitação a uma hora e meia de distância da Vila Sahy, se é ali que as pessoas trabalham e onde construíram suas vidas. O modo de viver precisa ser considerado e respeitado.

Após tragédia, população do litoral norte de SP precisa ser parte da reconstrução e monitoramento das ações. Edição: Victor Bravo

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